A Rosa entrou para a minha família há exactamente sessenta anos e um mês, no dia em que fez dezassete anos. Era loira, branca, linda de morrer e muito, muito pobre. Chegou a casa das minhas quatro tias-avós (todas solteironas) para servir. Nesse tempo ser criada era um modo de vida, e a Rosa é a melhor criada do mundo. Aliás, ela ofende-se profundamente se lhe chamam empregada: "empregadas são estas brasileiras de agora, menina, que não sabem fazer nada, nem limpar, nem cozinhar, nem engomar uma camisa e não têm respeitos aos patrões! Eu cá sou uma criada e disso já não há!"
Quando a última das minhas tias-avós morreu, a Rosa passou uns anos na nossa casa, para deleite dos meus pais (o meu Pai pela gula e a minha Mãe pelo descanso), mas assim que a minha irmã mais velha anunciou que se ia casar, a Rosa participou imediatamente que ia para casa dela. E a Rosa faz o que quer, sempre fez, e ninguém se atreve sequer a discutir com ela. E foi, claro, para grande desgosto nosso. Ainda hoje a Paula diz que foi o melhor presente de casamento que teve. A Rosa criou o meu Pai e os meus tios, a mim e aos meus irmãos, e os meus sobrinhos todos. E diz para o Pedro se despachar (o mais velho e único com casamento no horizonte) porque ainda quer ir para casa dele criar a quarta geração. Tem 77 anos, feitos há um mês, mas está aí para as curvas.
Cozinha como ninguém. Passa a ferro como eu nunca vi. Faz rendas lindas de morrer (fez pelo menos metade do meu enxoval) e casaquinhos de bebé lindos, sempre azuis, cor-de-rosa ou brancos. E não dá uma receita sem aldrabar qualquer coisa, para preservar o património culinário da família. Mesmo a nós, não dá uma receita sem nos recomendar mil vezes que não é para dar a ninguém. Se ela sonhasse com este blog, eu estava bem tramada...
Esta receita, tirada a ferros, dá para dois pirex médios ou um muito grande:
Massa:
250g de banha
800/900g de farinha (é ir vendo)
2,5 dl do caldo do recheio morno
sal
2 gemas para pincelar
Recheio:
1 galinha das boas, aos bocados e sem pele
10 grãos de pimenta preta
100g de toucinho alto e branco
1 cebola cravada com uns 10 cravinhos
1 ramo de hortelã
4 raminhos de alecrim
1 raminho de cebolinho
2 c. sopa de vinagre
sal
1 cebola picada
azeite para refogar
raspa de noz moscada
pimenta preta moída de fresco
sumo de 1/2 limão
1 cháv. do caldo da galinha
6/7 gemas
1 c. sopa de farinha
2 c. sopa de vinagre
sal
Põe-se a galinha a cozer em água com a cebola, o vinagre, os temperos e sal. Escorre-se, coa-se o caldo e aproveitam-se 2,5 dl para a massa e mais uma chávena para o recheio.
Entretanto faz-se a massa: deita-se a farinha na pedra da mesa, abre-se um buraco e junta-se o caldo morno, a banha aos bocadinhos e o sal. Amassa-se, não muito, até ficar boa para tender. Descansa enquanto se acaba o recheio.
Num tacho grande refoga-se em azeite a cebola picada, mais a cebola que se usou no caldo, sem deixar alourar. Junta-se a carne desfiada e o toucinho picado que se usou no caldo, a noz moscada, a pimenta e o sumo de limão. Noutro tachinho deita-se a c. sopa de farinha, as 2 c. sopa de vinagre, 1 chávena de caldo e as gemas batidas. Deixa-se engrossar e junta-se ao refogado. Prova-se de sal.
Estende-se a massa, dividida em duas, e forra-se um pirex grande (ou dois médios). Junta-se o recheio e tapa-se com o resto da massa. Abre-se um buraco no meio (a chaminé) e decora-se com as sobras de massa (a Rosa costuma fazer uma trança de massa para pôr à volta e folhas recortadas. Pincela-se com as gemas batidas e assa-se em forno médio.
Dá trabalho, pois dá. Mas é a melhor empada de galinha do planeta!
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22 comentários:
Se a massa não é das de bater muito, e podendo-se fazer uma empada grande, onde é que está o trabalho ;) (e tem ar de valer muuuuuito a pena!)
a senhora é linda!
Pedro,
Bota muuuuuito nisso!
SSV,
Não é? E é tão querida que nem imaginas! O pior é o mau-feitio, mas também já tem idade para isso :)))
Que a boa Rosa não sonhe que lhe fizeste essa maldade, Mad.
Todos caladinhos, vá, ou acabam-se as receitas de família aqui no MdB.
Que fome me deste! =))
Adoro a Rosa só de a ver na foto!
Paulo,
Se eu puser o recheio do peru de Natal é que há bronca da grossa. Com esta talvez me safe :)
PKB,
:))
Miguel,
Se a conhecesses, gostavas mais ainda :)
Mad, adoro empadas, se esta é a melhor do mundo não me pode escapar! :)
Minha amiga, o passatempo é de 15 em dias, supostamente deveria ser dia 13, mas como se teve de alterar o dia da semana (agora é ao Domingo), passou para dia 17...vais ver que passa num ápice! Fazes entretanto, e programas a publicação...já estou em pulgas! hehehe:)
Hummm confessa, a aldrabice da receita está na repetição dos grãos de pimenta, certo??
enxofre
Nota: Vou piar tudo à Rosa!
EMPADÃO MARAVILHOSO, MAS TAMBÉM TRABALHOSO,TUDO TEM SEU PREÇO, SE GOSTA TEM QUE TRABALHAR E FAZER PARA COMER.VAMOS À ELE.
Edilia
Que pessoa fantástica! Tive que anotar esta receita, pois tenho certeza que o resultado será maravilhoso!
Bjs
Adoro empadas de galinha e não é fácil encontrar uma boa feita fora de casa. Como não tenho medo do trabalho, vou guardar a receita para experimentar!
E gostei muito de conhecer a Rosa e a história dela!
Beijinho *
Mariana
Contaste uma história tão maravilhosa quanto a empada...
Beijinhos.
Acredita que me lembro de comer esta empada! É de comer e chorar por mais... adorei ver a Rosa!
Quando tiver tempo vou experimentar.
Beijinhos
Mary
Diabba,
Atreve-te e quando cá vieres jantar (ainda não perdi a esperança!) não peço à Rosinha para fazer :)
Edília,
Bem-vinda :)
Andrea,
Bem-vinda :)
Mariana,
Podes fazer à confiança. Nem que eu viva 100 anos hei-de cozinhar como a Rosa :)
Anna,
Obrigada :)
Isabel,
Pois lembras. Levávamos isto às fatias quando íamos para a praia. Faz meia receita ou congela metade antes de ir ao forno. Isto dá para dez pessoas.
Beijinhos :)
Essa sua 'Rosa Prateada' é a flor mais bela... oxalá a família a possa ter durante muitos anos com esse mesmo sorriso de felicidade e plenitude!
Quase que apetece escrever um livro com as pétalas aromatizadas dessa Rosa... :)
Um abraço.
Se a Rosa sabe que falou dela no blog, diga-lhe que aqui do Brasil mando-lhe lembranças e que concordo quando diz das atuais empregadas. Mas na minha familia e nas de algumas pessoas próximas tivemos gente como ela, Rosa, tão querida que é parte mesmo da família. Ficam a vida inteira.
Sílvia,
:))))
Bem-vinda.
Cara Mad,
Estava a dar uma voltinha pelo teu blog que ainda não tinha tido oportunidade de o fazer com calma e fiquei deliciada com esta receita. Só de ler, tenho a certeza de que é muito boa e vou fazê-la assim que puder, a ideia de usar o caldo de cozer a galinha para fazer a massa é genial.
Essa Dª. Rosa é uma pessoa maravilhosa.
Um grande beijinho
Moira
..e a vida DELA?!
Só hoje conheci teu blog,através lá dos ventos da Ana. Fiquei fascinada por essa empada. Vou ensinar para a Vera, que não está cá em casa há tanto quanto a tua Rosa, mas já se vão 38 anos, foi babá de todas nós e do meu filho. Hoje é cozinheira de mão cheia. Beijinhos
vou fazer agora =)
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